ADE 2016: evento mais importante de música eletrônica do planeta foi do som mais cabeçudo ao techno de arena

Chico Cornejo
Por Chico Cornejo

Cidades portuárias são do tipo em que negócios e prazer se misturam, e é em pleno outono que Amsterdam recebe centenas de milhares de pessoas para o evento que se tornou o ponto focal da música eletrônica mundial nos dias de hoje, congregando todos os tipos de profissionais relacionados às mais variadas atividades que movimentam esse crescente mercado cultural e faz dele uma das mais rentáveis formas de entretenimento. Mas, para além dos assuntos mundanos, esta é a época em que a cidade, já extremamente artística e hedonista por natureza, é inundada por música.

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As tradicionais bandeirolas amarelas do ADE tomam conta de Amsterdam

O Amsterdam Dance Event (ADE) é a expressão mais contemporânea da séria vocação holandesa para harmonizar comércio e fruição sem contradições ou pudores. É aqui que você pode, no espaço de algumas horas, assistir a apresentações inspiradas de luminares tão específicos quanto díspares de todo o circuito global como Armin Van Buuren, Louie Vega, Marcel Dettmann, Soul Clap, Jazzy Jeff e, de quebra, ainda pode ter a chance de ver um concerto de Phillip Glass ao lado de Laurie Anderson ou mesmo participar em debates acerca dos rumos da cena global com o prefeito da noite de Amsterdam, Mirik Milan, e o barão do Techno, Dave Clarke.

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Joris Voorn em session do Boiler Room no ADE 2016

O ADE é um evento – não apenas conferência, nem somente festival – no qual todos aqueles que vivem de e para a música eletrônica dançante se encontram para formar uma comunidade de conhecimento e celebração que mal cabe na cidade, mas que não caberia em nenhuma outra. E isto diz muito a respeito do tema em pauta – ainda que não haja um oficial que nomeie cada edição – sendo ele a sustentabilidade de nossa atividade, seja ela em termos ambientais, urbanísticos, financeiros, artísticos ou profiláticos.

Ademais, a fabulosa forma pela qual o ADE transforma Amsterdam em sua totalidade é se entranhando em todos os espaços possíveis da metrópole, desde aqueles que já possuem uma função vinculada à essa cultura, entre elas lojas de discos, clubs e parques, até outros que encontram pouca relação funcional direta com ela no cotidiano, como docas, prédios históricos, teatros, residências, museus, lojas, cafeterias e restaurantes, se transformando em salas de conferência, pop-up stores, centros de mídia, salas de reunião, campings e, obviamente, pistas de dança. Desse modo, vemos a transmutação de espaços urbanos e a ressignificação de seus usos como uma das mais distintivas características da nossa cultura (algo que metrópoles brasileiras mostram estar aprendendo em tempos recentes), ao lado daqueles elementos já distintivos, como o amor pelo vinil e a constante busca por inovação tecnológica.

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DJ set na loja e selo Rush Hour

O debate inaugural da terça-feira, uma novidade que agora estende o evento para além de seu próprio início oficial, entretém os já numerosos interessados com questões candentes como “qual o futuro do Fabric?”, “DJs deveriam fazer testes para poder se apresentar?”, “como o Brexit vai afetar o papel do Reino Unido no panorama global?”, “agentes e empresários estão inviabilizando a apresentação de artistas em festivais?”.

Mediado por Dave Clarke e composto por Mirik, Andy Beckett do Fabric, Terry Weerasinghe do Beatport, Laetitia Descouens da Decked Out e Molly Neuman do Kickstarter, ele procurou anunciar um pouco do tom de muito do conteúdo que a conferência teria a oferecer.

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Esta temática central pontuou muito do que foi discutido, apresentado e realizado durante os cinco dias, indo da exibição do novo documentário do premiado diretor Josh Fox sobre mudanças climáticas, conversas sobre a possibilidade de se conceber eventos mais sustentáveis com figuras centrais de gigantes do entretenimento, palestras sobre natureza e biodiversidade e uma lucrativa “gincana” estimulada pelo festival DGTL durante a festa da Kompakt com Laurent Garnier, Agoria e Michael Mayer nas docas de Amsterdam ao oferecer retornos no bar a cada copo de plástico recuperado pelos frequentadores. E, seguindo uma tradição holandesa já bem consolidada, a presença de advertências sobre produtos nocivos e locais de informação sobre drogas e seu uso responsável era ubíquo, especialmente nos locais em que as festas ocorriam.

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Um deleite: ver uma apresentação de Laurie Anderson e Phillip Glass juntos no ADE

Em um evento que sempre primou por se superar a cada edição, os pontos altos deste ano foram aqueles que o trouxeram mais próximo da “alta cultura”: a festa secreta de Maceo Plex na passagem subterrânea do RIjksmseum; a instalação audiovisual POLARIS no Stedelijk Museum com Fatima Yamaha, a presença de Glass e Anderson nas palestras e concertos; a tour do Van Gogh Museum guiada por Armin Van Buuren e a parceria com o Beus van Berlage ao oferecer descontos aos membros do ADE para visitarem a exposição de Banksy que este museu abriga.

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Expo do Banksy: quem tinha passes pro ADE entrava com desconto

Isto se somando às atividades que já são usualmente oferecidas e vão de oficinas patrocinadas pelas principais marcas de equipamentos a salas de speed networking e, claro, as inúmeras e mais variadas festanças para todos os gostos musicais. Nesse âmbito de lazer os destaques ficaram para a loja secreta da Clone numa magnífica cobertura em frente ao Beus Van Berlage com seleções de discos curadas por gente como Jennifer Cardini, Helena Hauff e Axel Boman; a sessão do Boiler Room com Joris Voorn, Intergalactic Gary e A Made Up Sound; o bate-bola beneficente incentivado pelo Resident Advisor com times de diversas marcas e selos em prol dos refugiados e as festas no recém-inaugurado club Claire (Gilles Peterson e Detroit Swindle), Mediahaven (Afterlife), no também novo e hypado De School (Floating Points, Four Tet, Dixon, Hunee e inúmeros outros), Gashouder (Awakenings) e Radion (Theo Parrish all night long para encerrar tudo no domingo).

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A loja secreta da Clone com discos selecionados por Jennifer Cardini e Axel Boman

Outro foco deste ano foi a importância da especificidade do contexto urbano para a criatividade e identidade artísticas, assunto que permeou mesas que falaram sobre Los Angeles e a importância de coletivos como o Soulection e a festa Low End Theory para sua renovação, e a atual situação de Berlim através dos olhos de gente que viveu e conduziu sua transformação, como Ellen Alien, Cassy e Moscoman. A diversidade também foi algo central nas discussões e participantes que figuravam no programa, com uma forte ênfase nos mercados asiáticos (Índia e China), em questões incômodas como a sub-representação de artistas não-brancos nos mais elevados escalões de reconhecimento e remuneração, assim como a centralidade da herança caribenha para a história da música eletrônica.

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Em compensação, a forte presença feminina no evento como um todo é algo que aponta para um futuro possível no qual podemos todos desfrutar e desenvolver uma cena mais saudável e equânime. Das lojas de discos às pistas, das cabines aos auditórios e salas, era alentador ver que o espaço das mulheres está demarcado e assegurado, ao menos durante esta semana especial em Amsterdam.

DEKMANTEL ANUNCIA EDIÇÃO BRASILEIRA EM PARCERIA COM GOP TUN E LINE-UP BOMBÁSTICO

A presença brasileira, por sua vez, foi bem marcada por uma instigante palestra dada por Caio Taborda da Gop Tun, ao lado de Thomas Martojo do Dekmantel, em que esmiuçaram um pouco da trajetória passada e futura da parceria que criou um dos festivais mais antecipados em território brasileiro; pelas sempre enérgicas apresentações da magnífica Anna tanto na DJ Room da Pioneer como na festa da Terminal M vs. Tronic; pela acachapante performance de L_cio no porão da pop-up store da Kompakt e também por um painel apresentado por Renato Ratier falando de sua presença no cenário nacional através de uma abordagem multidisciplinar.

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L_cio quebrou tudo na pop-up store da Kompakt no ADE 2016

Mais um ano no qual quem foi a Amsterdam para conhecer melhor o que faz a cena mundial pulsar, seus meandros e deficiências, seu potencial transformador e inventivo, não saiu desapontado ou desinformado, no máximo um pouco desorientado após uma carga tão pesada de atividades e estímulos sensoriais.

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