Ex-comissário da Varig, radialista e DJ José Roberto Mahr foi professor de toda uma nação alternativa no Brasil

Claudia Assef
Por Claudia Assef

José Roberto Mahr é um homem com uma missão. Desde o começo dos anos 80, essa missão tem sido: levar música alternativa de qualidade, do techno ao indie, para o máximo de gente possível. No rádio, com seu programa Novas Tendências, ele se tornou um verdadeiro guru dos aflitos brasileiros fãs de música udigrudi (era assim que se falava do under nos anos 70/80), que não tinham como se abastecer de novidades em viagens ao exterior.

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Em 1991, no topo do prédio do Jornal do Brasil, no Rio, pensando em… novas tendências

E falando em viagens, José Roberto Mahr fez muitas. Centenas. Na primeira oportunidade que teve, se tornou comissário da Varig e, como falava dois idiomas, logo foi chamado para trabalhar nas linhas internacionais. E foi aí que todo um novo universo se abriu para ele – e consequentemente para seus ouvintes no Brasil.  “Descobri muitas lojas, mas sempre optava pelas menores que tinham as bandas independentes como Rebel Rebel, em Nova York, Rough Trade e Sister Ray, em Londres, Funk You, em Amsterdam, entre outras”, conta Mahr, em entrevista ao Music Non Stop.

Trazendo discos da gringa para tocar em seu lendário programa, Mahr, com seu vozeirão, moldou o paladar musical de toda uma geração. Lembro de ter feito descobertas incríveis ouvindo o NT, que em São Paulo era transmitido pela 89 FM. Gravava sempre. Lembro de ter ouvido pela primeira vez Vienna, do Ultravox, e de ter ficado em choque por uma semana, na escola, lembrando da música, tão triste, tão moderna.

Ultravox – Vienna

Mas não foi apenas no rádio que ele deu suas aulinhas. Mahr começou a tocar em 1980, em festas de amigos, mas também já gravava fitas cassete com suas seleções para bares e lojas no Rio de Janeiro. A carreira de DJ começou “oficialmente” em 1984, quando estreou na discoteca Papagaio e meses depois no Mamão com Açucar, no Rio. No rádio, seu programa Club New Wave, que daria origem ao Novas Tendências, também estreou em 84, pela Estácio FM, no Rio.

Seu programa ganhou o novo bastante literal de Novas Tendências em 86, ano em que passou a ser transmitido também para São Paulo, pela recém-inaugurada 89 FM, e migrou para a Fluminense FM no Rio. Com seu caráter novidadeiro, o NT foi ganhando fãs nacionalmente e, ao longo dos anos, chegou a ser transmitido para 23 cidades brasileiras. Uma verdadeira dominação de house, indie, new disco, big beat, trance, e outros gêneros ainda alienígenas no rádio brasileiro até 1998, ano em que o programa chegou ao fim. Mahr segue firme no rádio com o programa Zero DB, que rola todas as quintas pela rádio Cidade, no Rio.

Como DJ, sua marca registrada sempre foi esse trânsito livre entre rock indie e música eletrônica. Tocou em clubes míticos, como os góticos Crepúsculo de Cubatão, no Rio, e Madame Satã, em São Paulo. Sempre com o objetivo de tocar para a pista e não para si. “Enquanto eles não gritam, eu não sossego”, resume Mahr.

Com tanta história na bagagem, nada mais justo do que a gente bater um papo com o mestre. Vamos à entrevista.

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Music Non Stop – Como era o ambiente na sua casa quando você era pequeno? Que discos tinham por lá?

José Roberto Mahr – Meus pais ouviam vários estilos musicais, mas a música não ocupava um lugar muito importante na casa. Então fui em busca da minha trilha musical. Isso foi bom, porque não tive nenhuma influência familiar.

Music Non Stop – Qual foi o primeiro disco que você comprou com seu dinheiro?

José Roberto Mahr – Os primeiros foram: Kraftwerk, Radio-Activity, e Velvet Underground, The Velvet Underground & Nico. Na época não conhecia. Achei as capas geniais, resolvi comprar e até hoje sou apaixonado por esses álbuns.

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Music Non Stop – Quando foi a primeira vez que você pensou que iria trabalhar com música?

José Roberto Mahr – Ocorreu tudo em um tempo certo. Quando senti que já tinha uma boa base musical, produzi, com o amigo Gustavo Motta, a nossa primeira festa em março de 1984.

Music Non Stop – Você foi comissário de bordo da Varig. Conta como você resolveu entrar nessa carreira.

José Roberto Mahr – Estava trabalhando em uma financeira, mas não gostava muito desta atividade, então decidi mudar. Fiz uma pesquisa, identifiquei-me com a profissão e resolvi trabalhar na aviação.

Music Non Stop – Como comissário você começou a comprar muitos discos imagino. Quais lojas frequentava?

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No lendário clube gótico carioca Crepúsculo de Cubatão, em 87

José Roberto Mahr – Entrei para a VARIG no final dos anos 80 e, como já falava dois idiomas, rapidamente fui para as linhas internacionais. Descobri muitas lojas, mas sempre optava pelas menores que tinham as bandas independentes como Rebel Rebel (NYC), Rough Trade e Sister Ray (Londres), Funk You (Amsterdam), entre outras.

Music Non Stop – Seu primeiro programa de rádio foi ao ar em 1984. Como você conseguiu essa vaga na rádio Estácio FM?

José Roberto Mahr – 1984 foi o ano em que a minha vida profissional como DJ e produtor começou e já com bases muito sólidas. Quando estava fazendo as minhas primeiras festas, um amigo elogiou o meu set e me perguntou se eu gostaria de trabalhar em rádio… Imagina a resposta? No dia seguinte, eu já estava com uma reunião marcada na Estácio FM. Neste momento comecei mais uma atividade, produzindo e apresentando um programa de rádio.

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Music Non Stop – Eu era totalmente fanática pelo Novas Tendências. Lembro quando ouvi pela primeira vez a música Vienna, do Ultravox. Sempre gravava, então ouvi a música 200 vezes e ficava imaginando da onde você tinha trazido aquilo. Como era feito o seu garimpo pro programa?

José Roberto Mahr – Eu fazia em média quatro viagens internacionais por ano. Todas as vezes que desembarcava, ía direto para as lojas ou para alguma reunião em um selo independente: Rough Trade, One Little Indian, Play It Again Sam, Mute e muitos outros. Comprava livros, jornais e revistas de músicas, pesquisava muito e, claro, ouvia também nas lojas. Assim descobri muita música boa.
À noite ia para os shows e depois para os clubs. Sem escala! Mas acredito que sou um autodidata nesse assunto. Desenvolvi um senso de audição e técnica para selecionar e trabalhar com música em diferentes seguimentos, sempre acertando na escolha do repertório. A minha pesquisa e a fome por informação é constante.

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Posando pra capa do CD Techno e Trance, de 94

Music Non Stop – Você chegou a transmitir o NT para várias cidades do Brasil. As pessoas te escreviam, como era o feedback dessa dominação do país que você fez?

José Roberto Mahr – O Novas Tendências foi e ainda é a “nave mãe”. Chegou a ser transmitido via satélite para 23 cidades do Brasil em edições semanais, alcançando um volume de audiência absurdo!
O programa era bem eclético, mostrando rock e música eletrônica. Os ouvintes sempre escreviam. Disponibilizei uma caixa postal postal para o programa incentivando a comunicação. Eu sempre fui muito ligado em tecnologia. Nos anos 80, a internet ainda não tinha chegado. Então enviava para os ouvintes a relação das músicas (roteiro do programa) via BBS (Bulletin Box System) para quem já possuía um computador com fax modem. No Facebook tem uma grupo criado por um ouvinte do NT de Recife, Fabio Menderson, que reune fãs do programa. Sempre acho importante saber a opinião dos ouvintes em relação ao programa.

Trecho do programa Novas Tendências postado no YouTube por fã

Music Non Stop – Qual foi o primeiro clube em que você discotecou? Com quem você aprendeu a mixar?

José Roberto Mahr – A primeira festa foi no extinto Papagaio, toquei com duas MK2 em março de 1984. Nessa época, eu tinha uma mesa de som profissional, tocava somente vinil e gravava nas fitas cassete. Exercitava em casa e aprendi bastante sobre a parte técnica com os profissionais nos estúdios e nas rádios.

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Mahr tocando numa festa X-Demente em 2001

Music Non Stop – Por que o NT saiu do ar em 1998?

José Roberto Mahr – A Rede Cidade, onde o programa era transmitido, começou a se desfazer e os programas via satélite tiveram que parar. Continuei mantendo o programa gravado em fita em algumas cidades e ía mensalmente a São Paulo, Porto Alegre e Recife para fazer o programa
ao vivo e gravar os posteriores. Mas acho que o NT teve o seu ciclo e foi muito bom e era hora de mudar. Foi um programa que refletiu uma época bem variada e de grande qualidade musical.

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Em 98, tocando na Bunker – a cara do Laurent Garnier, né?

Music Non Stop – Como você começou a trabalhar com áudio para companhias aéreas?

José Roberto Mahr – Sempre gostei de diversificar as atividades sonoras. Fiz um projeto diferenciado para a Varig e depois produzi canais de áudio para a TAM e TAP, com uma trilha específica para quem viaja de avião. Também desenvolvi com um amigo a sonorização das lojas da Company nos anos 80.

Music Non Stop – Você tem noção que ajudou a formar vários ouvidos nerds no Brasil, certo? Como se sente?

José Roberto Mahr – MUITO CONTENTE : ) Desde que comecei a trabalhar com música, seja na pista de um clube, nos programas de rádio ou fazendo uma ambientação sonora de uma exposição, um dos meus princípios básicos é compartilhar a música passando informação e mostrando as novidades musicais que eu acredito que alguém vai gostar e a partir daí os caminhos vão se ampliando.

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Music Non Stop – Qual a emoção de tocar pra uma pista depois de tantos anos de ofício, o que muda? E o permanece igual?

José Roberto Mahr – Trabalho desde 1984 e já são 32 anos de atividades sonoras incessantes.
Adoro discotecar! Seja na pista ou fazendo uma sequência no rádio ou na web. A emoção sempre existe. É o que me move. Às vezes com uma mistura de excitação e nervosismo, levo muitos discos e nunca sei exatamente o que vou tocar ou como vai ser o set. Vou lendo a pista e a vibe da galera. Enquanto eles não gritam, eu não sossego. Afinal de contas, todos vieram para se divertir e dançar muito na pista!

Music Non Stop – Você sempre transitou muito livre de preconceitos entre a música eletrônica e o rock indie. Por que você acha que esses gêneros meio que se distanciaram com o tempo? Impressão minha ou antes não tinha essa obrigação de separar tudo?

José Roberto Mahr – Acho que sou um dos poucos que sempre gostaram e trabalharam com o rock e a música eletrônica. Quando iniciei foi exatamente no momento em que, por exemplo, eu tocava no Crepúsculo de Cubatão (RJ) ou no Madame Satã (SP) e a trilha era The Sister of Mercy, Kraftwerk, Ultravox, The Smiths, Front 242… Só para citar alguns. E nos anos seguintes, aqui no Rio, São Paulo e outras cidades, inevitavelmente aconteceram festas, programas e eventos, específicos de rock e música eletrônica. Com o passar do tempo aconteceu esta divisão como uma opção musical de cada pessoa. Mas o meu olhar e os meu ouvidos sempre estarão ligados nestes dois estilos musicais. Enfim, THE MUSIC NEVER STOPS!

 

Claudia Assef

https://www.musicnonstop.com.br

Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.

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