Maior vendedor de discos da França, Jean-Michel Jarre usa seu synth pra fazer música com Snowden e democratizar tecnologia

Camilo Rocha
Por Camilo Rocha

Anos 70. Fundamentos da música eletrônica? Giorgio Moroder e Kraftwerk. Kraftwerk e Giorgio Moroder. É a narrativa que ouvimos centenas de vezes. Mas, na década de 70, se você era mais de ficar em casa vendo “As Panteras” na TV do que de ir à disco, a probabilidade era de que seu primeiro encontro com a música eletrônica fosse através do francês Jean-Michel Jarre.

jarre05De hit grande mesmo, o Kraftwerk só teve “Autobahn”. E Moroder era principalmente uma figura de bastidores com o holofote em Donna Summer. Já Jarre lançou um álbum em 77 chamado “Oxygene” que vendeu 12 milhões de cópias, segundo o último balanço, o que faz dele o álbum francês mais vendido da galáxia. O músico fez megashows em lugares incríveis com efeitos de luz, laser e fogos, televisionados para o mundo inteiro (o “Fantástico” adorava mostrar por aqui). Em 79, Jarre botou um milhão de pessoas na Place de la Concorde, em Paris. Em 85, uma apresentação em Houston contou com apoio da NASA e vários astronautas.

Por debaixo de todo o espetáculo, havia um incansável explorador. Apesar de muitas vezes cair para melodias duvidosas e ambiências new age, Jarre apresentou ideias e soluções pioneiras para a música feita em synths e samplers, não só em “Oxygene” como também em “Zoolook”, álbum de 1984 que conta com participações de Laurie Anderson e Andrew Belew (guitarrista que tocou com King Crimson e Talking Heads).

Muita gente considerava Jarre brega na década de 80. Ele foi sendo reavaliado com o tempo e hoje é justamente reconhecido como um dos inovadores da eletrônica. E veja que status: de 2015 para cá, ele lançou dois álbuns novos (“Electronica” 1 e 2) que trazem uma lista invejável de convidados. Massive Attack e Pet Shop Boys. Fuck Buttons e Primal Scream. John Carpenter e Gary Numan. E como cereja para a história toda: Edward Snowden, o ex-espião da CIA que vive exilado em Moscou depois de ter exposto o gigantesco esquema de vigilância online do governo americano.

De Paris, Jarre falou ao telefone comigo. E falou muito. Além de música e história, a conversa também abordou seu trabalho à frente da CISAC, uma sociedade de criadores que batalha por melhores pagamentos de direitos autorais na Internet. Atencioso, ignorou o aviso da assessoria quando a entrevista acabou e respondeu uma pergunta a mais, dizendo que planeja vir ao Brasil em 2017.

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Music Non Stop – Como aconteceu a colaboração com Edward Snowden? Ele é uma pessoa difícil de se acessar, não?

Jean-Michel Jarre – Um dos temas do meu novo álbum do projeto “Elecronica” é a música eletrônica, claro, mas também a paixão que todos nós tempos pela tecnologia, principalmente nós que fazemos essa música no cotidiano.

A tecnologia tem dois lados. Todos amamos esses aparelhos bonitos, tecnológicos, digitais e fantásticos, que usamos todos os dias. Há também um lado obscuro, que é o controle que eles exercem sobre nós.

Enquanto trabalhava no projeto soube de Snowden, de como ele estava gerando ideias e ação não para prejudicar seu país, mas para as pessoas, arriscando sua vida para alertar a comunidade. Nós sabemos que toda vez que lutamos para melhorar a sociedade, por abolir as proibições, pelo aborto das mulheres, o poder sempre reage. E Snowden é um rapaz jovem que não está aí para dizer que a tecnologia é ruim, mas sim que precisamos lutar contra os abusos da tecnologia, e por essa razão eu o quis no álbum.

Eu o contatei através do jornal inglês The Guardian e de algumas organizações. Fizemos uma videoconferência do meu estúdio, ele em Moscou, e depois fui até lá encontrá-lo. Não havia a ambição de transformá-lo em artista ou cantor. Ele disse que todos somos geeks, daí eu fiz uma música com sons da eletrônica pioneira, 8-bits, sons de Atari e dos primeiros Macintosh, e sugeri a ele falar por cima. Ele fala sobre as questões de termos cada vez mais informação e dados acumulados sobre tudo e sobre nós. Essa caça insana das maiores organizações do mundo, como FBI e CIA, atrás dele. Ele é um ícone de uma nova geração de uma nova era digital, preocupada com os abusos da tecnologia e com o controle dos governos.


Music Non Stop – Você acredita que hoje o poder de contestação e a rebeldia estão mais na tecnologia do que no pop, no rock e na música? Gente como Snowden, os hackers, o Anonymous…

Jean-Michel Jarre – Você está certo em dizer que, historicamente, a música esteve ligada à rebeldia. Há dois lados da música eletrônica, uma de sair, de dançar e se divertir. E outra dessa música popular sempre ser o reflexo de seu tempo, certo? Quando comecei a fazer música a eletrônica era nova e se opunha ao establishment do rock. O techno começou depois da queda do muro de Berlim e com o fim da indústria automotiva de Detroit… sempre sinais de seu tempo.

É interessante pessoas como Snowden e o fato de que tudo hoje é parte da tecnologia, mas há muitos ativistas ainda na música eletrônica. No meu projeto “Electronica” eu com Laurie Anderson, Massive Attack, Peaches, a Cindy Lauper que luta pelos LGBT…

É algo que ainda existe e muitas pessoas ao redor do mundo, principalmente jovens, são atraídos também pela rejeição ao poder estabelecido. Gente como Snowden, que questionam o poder para trazer conhecimento às pessoas. E nosso trabalho na música creio ser de criar novas formas musicais e passar convicções, de uma forma ou de outra.


Music Non Stop – Quando o Kraftwerk surgiu muito gente era suspeita da tecnologia, eles eram vistos como estranhos, havia um medo da tecnologia ir longe demais. As pessoas deveriam pensar mais nas implicações da tecnologia hoje em dia?

Jean-Michel Jarre – É uma pergunta muito interessante. Por outro lado, quando comecei, a sociedade tinha uma positiva visão do futuro. Da tecnologia também, achavam que os carros iam voar um dia… Tínhamos esses sonhos, uma utopia pelo futuro. Antes, lá no começo do século XX, as pessoas achavam que sua cabeça ia explodir se o trem fosse mais rápido que o limite (risos).

Cada geração tem seu approach à tecnologia. Recentemente a visão do futuro vem entrando em descrédito. Hoje os super-heróis não são o futuro, são vintage, colocamos nossa vida nas mãos do Batman, que é um cara que tem 80 anos já.

Com os filmes “Interestelar” e “Perdido em Marte” noto que estamos um pouco mais curiosos pelo futuro, reapropriando ele no nosso mundo tecnológico de hoje. E a tecnologia hoje está em todo lugar, algo que se torna banal até. E as gerações repetem muitas coisas, hoje falamos sobre a CIA contra o Snowden, como antes, na Guerra Fria, agora estamos pensando também nessas crises.

Cada época precisa criar sua visão utópica do futuro. Acho que a geração atual tem como parte de sua utopia de futuro lutar contra os abusos da tecnologia.

Um veterano antenado nas delícias (e nas arapucas) da tecnologia atual

Um veterano antenado nas delícias (e nas arapucas) da tecnologia atual

Music Non Stop – Você é presidente do CISAC (International Confederation Of Societies Of Authors And Composers). Qual sua opinião sobre a música em streaming? Acha que serviços como Spotify são soluções para que os artistas sejam melhores pagos, ou isso não é uma solução de forma alguma?

Jean-Michel Jarre – Eu mandei uma carta em nome de 5 milhões de criadores para a presidente do Brasil, dizendo para vocês terem cuidado e não destruírem a cultura! Veja bem, nós temos que educar os políticos.

Todos amamos a tecnológica, e o conteúdo musical e cultural está em todo lugar. Mas para as futuras gerações temos que tomar cuidado com as pequenas crianças que um dia sonham serem fotógrafos, músicos, escritores… Eles precisarão de um trabalho nessas áreas, senão não há sonho.

Só que a indústria criativa e cultura nunca geraram tanto dinheiro no mundo, mais que a moda e a indústria automobilística. O que faz a identidade do Brasil? É sua música, são a culinária, os filmes… Se você mata essas coisas, se está “googlalizando” o Brasil, o mundo, o que sobrará? Toda das comunidades e das culturas dos países. O que devemos é criar um novo modelo de negócio. YouTube, Google, Facebook… Essas gigantes da internet estão retendo nosso conteúdo, estamos nos tornando parte do jogo, ajudando nessa concentração. Não sou pessimista, mas estas companhias devem tomar cuidado para não se tornarem o próximo MySpace, pois se essas companhias são muito fortes, elas também são muito frágeis, e esses elementos frágeis são perigosos.

Temos que mudar de lado na mesa como criadores, enfrentar essas gigantes. Há algo que existe em alguns países, muito simples: para cada aparelhou e gadget que carregue conteúdo (smartphones, laptops, etc), há de se pagar alguns poucos centavos, que vão para sociedades coletivas que distribuirão esses fundos. Pronto, está resolvido o futuro dos músicos, de criadores, fotógrafos… É nossa responsabilidade como criadores, de dizer às empresas que elas não entendem o que está acontecendo.

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Music Non Stop – Aqui há no Brasil há agências coletoras de taxas de copyright (o ECAD), mas esse dinheiro geralmente só vai para artistas mais famosos. Os menos conhecidos ganham muito menos, ou dinheiro nenhum.

Jean-Michel Jarre – Esse é um sistema antigo. A tecnologia é o problema e também a solução, porque com a música no formato digital podemos ser bem minuciosos com os copyrights, medir e identificar que direito e que dinheiro pode ir certo para cada artista, uma distribuição melhor. Temos que ter distribuição de copyright! A sociedade nem fala disso hoje, e temos que ter uma distribuiçãoo justa, temos que pensar nisso para as próximas gerações.

Music Non Stop – Voltando à história da música. Você começou a fazer música na mesma época do Kraftwerk. Qual era sua impressão sobre eles à época?

Jean-Michel Jarre – Nós começamos quase no mesmo tempo, os músicos eletrônicos eram muito isolados à essa época, não havia internet (risos). Era uma música que não tinha nada a ver com jazz ou rock americanos, era uma música basicamente da França e da Alemanha. Não lembro quando direito, eu estava escrevendo “Oxygene”, e já tinha alguns álbuns iniciais que não me fizeram popular. Me lembro de escutar “Autobahn” no rádio, achar que era algo californiano, tipo Beach Boys com sintetizadores! Isso é uma boa amostra de como eram poucos caras na Europa trabalhando com essas máquinas sem serem reconhecidos pelo resto do mundo, naquela época.

Eram poucos, eu, Kraftwerk, também o Tangerine Dream, que fiquei muito feliz de poder ter colaborado no primeiro disco do “Electronica”. Aliás, essa nossa track foi a última em que Edgard Froese (fundador do Tangerine) trabalhou antes de falecer. Foi um bom jeito de eu ir um pouco para o lado alemão da música eletrônica.

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